O Suicídio em suas diversas faces

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Uma película fina e translúcida separa a vida e a morte, o existente do inexistente. O que define a vida e qual é o seu propósito? E a morte, é um resultado inexorável que se esgota em sua própria existência, ou apenas uma passagem para algo além do que a consciência pode assimilar? Essas são perguntas que ecoaram, e que provavelmente ecoarão na mente de todos durante a existência humana, já que o medo de morrer deve ser tão antigo quanto a consciência de estar vivo. Durante a jornada de cada ser, vão sendo empilhados de cada lado dessa balança: alegrias, tristezas, erros, acertos, prazeres e decepções.

Em meio a esses questionamentos existenciais, há um fato, também enunciado como fatalidade, que chama a atenção na história das civilizações. Independente da nacionalidade, dos valores, das crenças, do período, advém uma incoerência, uma ambivalência de sentimentos, com parcela da população que em algum momento da existência desses indivíduos os fazem escolher quebrar essa película. Seja de maneira imediata ou “homeopática”, brutal ou a esmaecendo de forma sutil, até que o equilíbrio dinâmico se transforme em um equilíbrio estático; esse movimento é chamado de suicídio. Um ato volitivo, nem sempre consciente, tão pouco instantâneo, no qual o indivíduo interrompe sua vida.

Observa-se que a quantidade e a motivação vêm se alterando ao longo do tempo. Dados brasileiros mostram que a taxa de suicídio teve um crescimento relevante entre os anos de 2011 e 2015 em 12%, sendo a quarta causa de morte entre jovens de 15 e 29 anos. Foram 10.490 mortes em 2011: 5,3 a cada 100 mil habitantes. O Número em 2015 chegou a 11.736: 5,7 a cada 100 mil, segundo dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). No mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de mortes por suicídio é quase o dobro daquelas causadas por homicídio: 800 mil por ano, contra 470 mil. A cada 40 segundos, uma pessoa morre no mundo. Isso significa que, quando o leitor tiver terminado esse parágrafo, pelo menos 2 pessoas terão tirado a própria vida. O que tem impulsionado esse desequilíbrio modificou-se um pouco nesse mesmo período. Muito mais que uma insatisfação com a vida, há também um componente de perversidade, sadismo e tortura, como é o caso do jogo Baleia azul, no qual há uma habituação com a dor. A pessoa, geralmente adolescente, vai se dessensibilizando, tomando um conjunto de atitudes cada vez mais graves e aterrorizantes até tornar-se destemido e excitado para o desafio de pôr em risco a própria vida. Outro impulsionador importante, e que merece atenção nesses novos tempos, é o chamado bullying que consiste na prática de atos violentos, intencionais e repetidos, contra uma pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às vítimas. Ele pode despertar sentimentos destrutivos que podem ser responsáveis pelo desejo de colocar fim à própria vida.

(Fonte: Bodega et al., 2009)

O suicídio é o resultado trágico de uma interação complexa de fenômenos sociais, psicológicos, genéticos, bioquímicos, clínicos e outros, às vezes, imponderáveis. Todos esses aspectos são importantes, porém um deles é preponderante sobre os outros. Em 90% dos casos, o suicídio está relacionado a um transtorno psiquiátrico. Os mais comuns são: esquizofrenia, bipolaridade, depressão e dependência química por uso de drogas. A dor e a angústia que é sentido momentos antes do ato de se suicidar, sem dúvida merece a devida atenção nesse cenário. A vida torna-se insuportável. Pode-se dizer que a pessoa acreditou ter esgotado todos os meios possíveis para encontrar sentido em sua vida. Contudo, isso também é apenas a ponta do iceberg, escolhas e fatores anteriores levaram a esse beco sem saída. A falta de estrutura dos lares é também um elemento importante a ser analisado. Concomitantemente a esse aumento, ao longo das décadas, a estrutura familiar vem sofrendo mudanças substanciais e isso tem resultado em danos catastróficos a estrutura dos indivíduos das gerações subsequentes. A capacidade de suportar frustações, a resiliência, tem diminuído geração após geração.

Até aqui, nada disse de diferente daquilo que pesquisadores e outros estudiosos do assunto trazem ao falar sobre o tema. A pergunta que fica após analisar todos os dados estatísticos e os fenômenos é: o porquê? A motivação será realmente aquilo que se conclui com o inquérito policial? As diversas combinações dos complexos fenômenos seriam suficientes para responder a questão? Creio que, se assumir uma postura mais inquiridora e duvidosa sobre os dados científicos exposto até o momento, talvez esteja mais perto de interromper o bocejo e a banalização que a mesma informação traz para ao leitor nesse momento. Evito dessa forma pecar com o excesso de informações e trago luz a um tema exaustivamente debatido nesse mês de setembro.

Aquilo que esses dados nos mostram é tudo que se pode relatar como suicídio? Como foi dito no segundo parágrafo, o ato volitivo não necessariamente é imediato e brutal. Essa incoerência vital pode vir muito antes daquilo que se chama de efeito material da escolha pela morte. E pra tornar a questão ainda mais complexa, muitas vezes além de ser lenta, e progressiva, ela pode estar em uma parte do psiquismo onde a maioria das pessoas, pra não dizer o total absoluto, não tem acesso de forma direta. Estou falando do inconsciente.

Se olhado por um prisma sistêmico, segundo Bert Hellinger, o suicídio é o resultado de uma exclusão. Essa exclusão causa um desequilíbrio no sistema. O desejo  de pertencer, tanto do morto quanto do vivo, a ilusão de ser herói, a lealdade a alguém e ao sistema, ou o amor cego, muitas vezes leva uma pessoa ao suicídio, e isso, nem sempre está em seu campo consciente, mas em seu inconsciente.

Quando aplicado essa noção sistêmica, que traz em sua essência o inconsciente dinâmico da psicanálise, os números são substancialmente “engrossados” pois podem ser a eles acrescentados todas as vítimas de acidentes automobilísticos que por maior ou menor graus de responsabilidade vieram a falecer em decorrência de imprudência, imperícia e uso de álcool, ou outros entorpecentes ao dirigir (47 mil por ano no Brasil). E aproveitando o exemplo anterior, quanto seria esse percentual se fosse colocado também os que morrem em decorrência da utilização de drogas em geral? Seja de forma por consumi-la ou pela violência a que se expõe nas diversas modalidades de interação com a mesma (500 mil mortes por ano no Brasil). E aqueles que contraem doenças crônicas (cardiopatias, pneumopatias, câncer, acidente vascular cerebral e diabetes) falecendo anos depois em decorrência de desequilíbrios com alimentação, exposição a agentes cancerígenos? 16 milhões por ano no mundo. Adicione também a esse número os “acidentes” que acontecem diariamente com praticantes de esportes radicais narcisistas que tiram selfies em locais perigosos. Não se esqueça de somar os assassinatos ocasionados por interação de pessoas que flertam em redes sociais ou aplicativos de relacionamento e que entrega sua vida nas mãos de um psicopata. Os exemplos e os percentuais poderiam continuar indefinidamente, mas vou poupá-lo leitor. Talvez você esteja nesse momento se questionando sobre o que resta daquilo que está fazendo que não tenha entrado nessa lista? Ou pensando o que sobra desse percentual de pessoas que estejam buscando viver? Pois é, por que a vida está tão incoerente? O que aconteceu com o homem que fez a vontade de viver sucumbir dentro dele?

Há muito tempo o homem vem se afastando daquilo que é realmente importante para ele. Excluindo diversos processos importantes que o fizeram ser o que é, e isso tem um alto preço. A falta e o ressentimento estão cada vez maiores, par a par com uma cultura de consumo e supervalorização do parecer, em detrimento do ser.

É preciso dar especial atenção para o tema do suicídio em suas diversas faces, levando-se em conta tudo o que já foi exposto. A psicanálise é um tratamento que auxilia o indivíduo na busca de uma vida coerente e produtiva, na qual o respeito pela vida, o amor e a ética são os alicerces dessa construção.

Arnaldo Rodrigues

Psicanalista

Referências:

1- BAUMAN, Zygmund. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009;

2- BAUMAN, Zygmund. A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001;

3- BAUMAN, Zygmund. Amor líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

4- BODEGA, Neury José. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015;

5- Botega, N. J., Marín-León, L., Oliveira, H. B., Barros, M. B., Silva, V. F., & Dalgalarrondo. P. (2009). Prevalências de ideação, planos e tentativas de suicídio: um inquérito populacional em Campinas SP. Cadernos de Saúde Pública, 25(12), 2632-2638;

6- https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2018/06/24/interna_ciencia_saude,690529/suicidio-e-responsavel-por-800-mil-mortes-anuais-e-avanca-pelos-paises.shtml, pesquisado em 15/09/2018;

7- https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2017/09/numero-de-suicidios-aumentou-12-no-brasil-mostra-ministerio-da-saude.html, pesquisado em 15/09/2018;

8- https://www.significados.com.br/bullying/, pesquisado em 16/09/2018;

9- https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2017/05/1888812-transito-no-brasil-mata-47-mil-por-ano-e-deixa-400-mil-com-alguma-sequela.shtml, pesquisado em 16/09/2018;

10- https://g1.globo.com/bemestar/noticia/oms-afirma-que-consumo-de-drogas-causa-500-mil-mortes-anuais.ghtml, pesquisado em 15/09/2018;

11- https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=4766:doencas-cronicas-nao-transmissiveis-causam-16-milhoes-de-mortes-prematuras-todos-os-anos&Itemid=839, pesquisado em 16/09/2018;

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